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Por Juliette Hochberg, de Marie Claire Fran�a, com tradu��o de Camila Cetrone, de Marie Claire Brasil

06/12/2023 06h01 Atualizado 06/12/2023

"Tive sorte. Fui v�tima do estupro certo." A francesa Giulia Fo�s diz essas palavras chocantes em seu ensaio-testemunho Je suis une sur deux (Eu sou um dos dois, em portugu�s). H� 20 anos, um estranho "sequestrou" a jornalista e produtora da r�dio France Inter em um estacionamento. Ela escreve que o homem a levou para um campo ermo, onde a estuprou.

Giulia Fo�s diz ter sido v�tima do "estupro certo", ou seja, aquele do qual se pode, de certa forma, falar mais facilmente, pois est� de acordo com a imagem que temos desse crime. Ou seja, quando a viol�ncia sexual � de autoria de um desconhecido. No entanto, o estupro conforme o imaginamos � em um local isolado, escuro (uma rua, um estacionamento, um por�o) por um estranho violento e armado � � muito minorit�rio.

Como destaca a pesquisa da associa��o francesa M�moire Traumatique et Victimologie conduzida pelo Instituto Ipsos, publicada em 1� de fevereiro de 2023, "idealiza��es falsas sobre estupros, estere�tipos sexistas e a cultura do estupro s�o persistentes e difundidos".

Segundo esse estudo encomendado pela m�dica psiquiatra Muriel Salmona, presidente da Associa��o M�moire Traumatique et Victimologie, "1 em cada 5 franceses ainda considera que for�ar o c�njuge a ter rela��es sexuais n�o � estupro".

Na Fran�a, a v�tima conhece o agressor em nove em cada dez casos, sendo que, na metade deles, o estuprador � o c�njuge ou ex-c�njuge. Os n�meros chocantes s�o citados no livro coletivo Le viol conjugal: un crime comme les autres? (Estupro marital: um crime como qualqer outro?), editado pelo m�dico legista Patrick Chariot.

[Nota de Marie Claire Brasil: o texto original remete � realidade francesa, mas n�o invalida que o estupro marital tamb�m acontece no Brasil em grande escala. Dados do Sistema de Informa��o de Agravos de Notifica��o (Sinan) apontam que c�njuges ou namorados foram os autores de um a cada oito estupros de mulheres no Brasil entre 2012 e 2023. Ou seja: dos 350 mil estupros que ocorreram neste per�odo, 42,5 mil se enquadram na defini��o de estupro marital]

A pesquisa anual do Conselho Superior para a Igualdade sobre o sexismo na Fran�a, realizada pelo instituto Viavoice e divulgada em 23 de janeiro de 2023, revela ainda que 33% das mulheres francesas j� tiveram rela��es sexuais devido � insist�ncia de seus parceiros quando n�o queriam.

Os homens "t�m dificuldade em perceber seu envolvimento e n�o assumem responsabilidade pessoal", aponta o estudo: apenas 73% consideram problem�tico insistir para ter rela��es sexuais combrazino como jogarparceira. E 12% declaram j� ter feito isso.

+ Homens, at� quando v�o fechar os olhos parabrazino como jogarresponsabilidade na cultura do estupro?

�Estupro�, uma palavra assustadora

"O estupro � a alteridade, a dist�ncia do estuprador", analisa, no contexto de Giulia Fo�s, a militante feminista e ensa�sta sobre sexismo e cultura do estupro Val�rie Rey-Robert. "Nenhum homem se reconhece na imagem t�pica do estuprador. Isso permite que eles nunca questionem seu pr�prio comportamento", continua. "Se o estuprador � sempre o Outro, a ordem social est� preservada. Se o estupro � apenas obra de alguns malucos, ent�o n�o h� problema pol�tico, estrutural, n�o h� ordem patriarcal por tr�s disso", destaca a entrevistada.

�Voc� vai pensar que estou exagerando, mas acredito que sofri um estupro�

As v�timas de viol�ncia sexual tamb�m est�o sujeitas a representa��es arraigadas, segundo Val�rie Rey-Robert. "Elas nunca est�o no lugar da vitimiza��o, mas sempre no de minimiza��o", observa.

"Voc� vai pensar que estou exagerando, mas acredito que sofri um estupro": assim come�am os depoimentos que muitas mulheres compartilham com a Rey-Robert. Muitas vezes, elas dir�o: "Eu me forcei."

Cl�mentine, ent�o adolescente, percebe que Maxime*, seu primeiro namorado, fez algo anormal v�rias vezes quando compara suas rela��es sexuais com as de suas amigas do ensino m�dio. No entanto, para ela, era imposs�vel qualificarbrazino como jogarexperi�ncia como estupro. "Essa palavra � t�o violenta. Al�m disso, quando voc� est� em um relacionamento e apaixonada, � dif�cil conceber que seja um estupro", analisa a jovem, dez anos depois de seu primeiro relacionamento, que durou quatro anos.

Marie tamb�m teve dificuldade em definir o que estava acontecendo embrazino como jogarpr�pria cama. Desde a primeira vez em que seu marido n�o ouviu seu "n�o" e respondeu "Espere, est� quase acabando", ela sabia que uma linha tinha sido cruzada.

Mas, casada, a mulher percebeu que foi estupro na noite em que, pela primeira vez, "ele n�o foi pela frente". "Ele me jogou na cama, segurou minhas m�os nas costas e ent�o... Sem lubrificante, arrancou tudo de mim. Durou tr�s minutos, o tempo dos movimentos de vaiv�m, mas foi o suficiente para me fazer sofrer. Eu pedia para ele parar. Eu chorava e sangrava."

+ Casa, um espa�o para o feminic�dio

Anos de viol�ncia e sofrimento

Mathias, pai de seus dois primeiros filhos, a estuprou at� o div�rcio, solicitado por Marie ap�s oito anos de relacionamento, para p�r fim a essas viol�ncias. Ela n�o terminou antes porque n�o tinha "meios para sair", confessa, antecipando as perguntas frequentes: "Mas por que voc� ficou?"

Tr�s dias ap�s o nascimento de seu segundo filho, Marie, que tinha acabado de dar � luz, n�o sentia desejo. Mathias n�o suportou isso. Foi quando ele a estuprou pela primeira vez. Ele a jogou na cama, a segurou para que ficasse no lugar e arrancoubrazino como jogarcalcinha.

De f�rias com a fam�lia no campo, Marie encontrou for�as para falar combrazino como jogarsogra sobre o porqu� de desejar se divorciar. "Enquanto estava no jardim com a m�e dele, ele me chamou para v�-lo no nosso quarto, me dizendo que havia algo estranho", relembra a mulher, hoje com 31 anos. Era uma desculpa para atra�-la. Ela mal percebeu que n�o havia nada de diferente quando ele a jogou na cama e a estuprou novamente.

J� divorciados, os ex-c�njuges chegaram a se reencontrar. Marie estava gr�vida de cinco meses, esperando um filho de seu novo parceiro, e ele a colocou contra a parede. "Ao me tocar, ele me ofereceu dinheiro para dormirmos juntos", ela lembra, com amargura.

Do �dever conjugal� ao estupro marital

Quando acordou, atordoada, ap�s ter sido estuprada pela primeira vez na noite anterior, Marie interroga o marido. Ela pergunta se ele percebe o que fez. Ela mesma n�o pensa, neste momento, que se trata de um estupro. Apenas sabe que � grave. "Voc� est� exagerando!", disse o pai de seus dois filhos mais velhos.

"Para ele, tinha uma certa legitimidade para agir assim. [Transar com ele] era simplesmente meu 'dever conjugal'", interpreta Marie hoje.

A sociedade foi constru�da em torno dessas cren�as denunciadas por Val�rie Rey-Robert. "As mulheres devem um trabalho dom�stico, de zeladoria e sexual aos homens: isso � o patriarcado", diz a ativista, que luta contra a viol�ncia sexual h� quase 20 anos.

A sociedade est� ainda mais impregnada dessa concep��o patriarcal, uma vez que a justi�a em si apontava o dedo para as esposas que "falhavam" em seu "dever conjugal", j� que o estupro marital s� foi inclu�do na lei da Fran�a em 1992 [No Brasil, foi enquadrado como crime pelo Artigo 7� da Lei Maria da Penha, de 2006].

Antes disso, para os tribunais, a quest�o do consentimento nem deveria ser levantada entre c�njuges. A express�o antiquada "dever conjugal", originada do direito can�nico da Igreja Cat�lica na Idade M�dia, n�o est� presente no C�digo Civil da Fran�a � ela � at� proscrita pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH). No entanto, para alguns ju�zes, decorre dos deveres da fidelidade (artigo 212 do C�digo franc�s) e da vida em comum (artigo 215).

Em 2023, uma mulher de 66 anos foi considerada culpada por se recusar a ter rela��es sexuais com seu marido pelo Tribunal de Apela��o de Versalhes. Foi concedido, ent�o, um div�rcio com culpa, segundo o Le Parisien.

Apoiada por v�rias associa��es feministas, ela recorreu em 6 de mar�o deste ano ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, buscando uma condena��o para a Fran�a.

"A liberdade sexual implica a liberdade de ter rela��es sexuais entre adultos com consentimento, assim como a liberdade de n�o t�-las", destaca o Coletivo Feminista Contra o Estupro e a Funda��o das Mulheres, em comunicado conjunto.

Paradoxalmente, na Fran�a, o estupro entre c�njuges � punido mais severamente desde a Lei de 4 de abril de 2006, que fortalece a preven��o e a repress�o da viol�ncia dentro de um relacionamento conjugal. A pena para o autor desses crimes n�o � de 15 anos de pris�o � como no caso de um estupro entre desconhecidos �, mas de 20 anos.

Ass�dio, chantagem e culpabiliza��o

Cl�mentine relembra todas as vezes em que seu primeiro namorado n�o respeitoubrazino como jogarrecusa verbal. "Uma noite, n�o estava com vontade de fazer sexo e disse a ele explicitamente. Dormi em seguida. Ele me acordou e fez o que tinha que fazer", conta ela, usando um eufemismo suport�vel para ela.

"Outra vez, eu disse 'n�o' um pouco mais alto, de maneira mais veemente, e ele virou a cabe�a para o outro lado da cama. Quando ele ficava chateado assim, eu me sentia culpada e voltava para ele", lembra a mulher de 28 anos.

Maxime comprou um telefone fixo para Cl�mentine conectar em seu dormit�rio, para que ele pudesse conversar longamente com ela sobre sexo, todas as noites. Cl�mentine descreve "chamadas de v�rias horas em que ele a manipulava e a levava ao limite". "Era muito desgastante. Eu chorava todas as noites", suspira.

�Psicologicamente exausta, eu n�o queria sofrer mais uma vez, ent�o eu dizia �sim�.�

Marie tamb�m menciona a chantagem emocional de seu ex-marido, que dizia "Voc� n�o me ama mais" quando ela dizia "N�o" para um ato sexual, logo depois de dar � luz. Ela tamb�m narra o ass�dio sexual que a destruiu: desde "as insist�ncias" at� "a persegui��o di�ria". Ela confessa: "Psicologicamente exausta, eu n�o queria sofrer mais uma vez, ent�o eu dizia 'sim'."

Os depoimentos dessas duas mulheres ilustram o quanto a chantagem emocional, a culpabiliza��o da v�tima e o ass�dio moral e sexual s�o inerentes ao mecanismo do estupro marital. Essas viol�ncias psicol�gicas preparam a v�tima, j� exausta, para ceder. Mas "ceder n�o � consentir", como proclamam as ativistas feministas nos muros de nossas cidades, e como escreve Giulia Fo�s em seu ensaio.

�Meu c�rebro desligou�

Num texto pessoal e impactante, a jornalista Morgane Giuliani, ex-editora da se��o de sociedade da Marie Claire Fran�a, decifra a "zona cinzenta" em que muitas mulheres se encontram diante da press�o de seus parceiros � e como percebem, depois, terem se for�ado.

"Quantas se sentir�o respons�veis por ceder a uma press�o social injusta, resultante dessa cren�a imunda e persistente de que as mulheres 'devem' sexo aos homens, especialmente dentro de um relacionamento?", questiona � antes de confessar fazer parte desse grupo.

"Ao nos separarmos, eu disse a ele que me forcei em nossa �ltima rela��o sexual, o que n�o era normal. Que era um sinal claro de que precis�vamos parar. Era importante para mim falar sobre isso, para que ele entendesse em que ponto eu estava, cedendo � press�o dele por desespero", detalha a autora. "Sim, eu senti que voc� n�o queria", respondeu seu companheiro. Uma admiss�o violenta que a choca instantaneamente e que a assombrar� por muito tempo. "N�o esperava por essa resposta. Senti meu cora��o se desprender e cair em um abismo sem fundo, sem som."

Morgane escreve ter tido medo de falar sobre isso, de "n�o 'merecer' seu 'lugar' de v�tima, como a maioria das outras". "As mulheres vivem verdadeiramente com medo constante de que digam a elas que est�o exagerando, que est�o fazendo um drama por nada", analisa Val�rie Rey-Robert.

Guiadas por esse medo, elas usam a express�o "zona cinzenta" para descrever o que viveram, segundo a autora do livro Uma cultura do estupro � francesa (n�o publicado no Brasil). Resumidamente: elas minimizam o que poderia ser considerado um estupro. "A express�o � uma armadilha. Ela retira a culpa do agressor", insiste.

Sobre as muitas vezes em que se "for�ou", Marie n�o fala em "zona cinzenta", mas em "modo off". "Inicialmente, eu o rejeitava, todas as vezes. E ent�o meu c�rebro desligou."

Cl�mentine tamb�m conta ter "se desconectado" muitas vezes, exausta pelo ass�dio de seu namorado. Como no dia em que ela o informou de que estava terminando a rela��o. As dores de est�mago e a vontade de vomitar aumentam quando ela imagina seu agressor. Quando n�o d� mais para suportar, ela sente que precisa terminar. "Podemos ficar juntos uma �ltima vez?", ousa perguntar Maxime, quando recebe a not�cia. Cl�mentine, enojada, sabe que ele a assediar� enquanto ela continuar recusando. Ent�o, ela se desconectou uma �ltima vez, e depois partiu.

+ Mais de 5 mil meninas v�timas de estupro deram � luz no Brasil at� junho de 2023

Cicatrizes e pesadelos

O trauma de Cl�mentine ressurgiu inicialmente durante a noite. Cinco anos ap�sbrazino como jogarsepara��o, a jovem, ent�o estudante, frequentemente tem pesadelos com o que sofreu na adolesc�ncia. � noite, as lembran�as que ela tinha enterrado a despertam, e durante o dia ela convive com mulheres engajadas e feministas. Ao lado delas, aprende a express�o "estupro marital", que ela associa lentamente �brazino como jogarpr�pria experi�ncia.

Ela confessa viver hoje com "o medo de encontrar novamente um homem que n�o tenha internalizado a no��o de consentimento". Mas, "dependendo do dia", se sente pronta para conhecer algu�m novo.

Deste epis�dio debrazino como jogarvida �ntima, encerrado h� quase cinco anos, Marie ainda guarda cicatrizes. Literalmente. �s vezes, chora quando se v� nessas cenas, mas as sequelas s�o tamb�m f�sicas. "A cicatriz [dabrazino como jogarlacera��o anal, causada pela brutalidade do agressor] se abre �s vezes. Quando me sento e sinto, como um choque el�trico, ela me lembra desse passado dif�cil."

Marie prometeu a si mesma: nunca mais ficar� sozinha em uma sala com seu ex-marido. Vivendo em uni�o est�vel com o pai de seu terceiro filho, ela redescobriu o que � ter uma vida sexual de casal consentida e realizada.

*A pedido dessas duas mulheres, que testemunham com seus nomes reais, os nomes de seus agressores foram modificados

Este artigo foi originalmente publicado em Marie Claire Fran�a, com contextualiza��es feitas por Marie Claire Brasil.

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